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Fonte: O GLOBO
RIO — A recessão de 2015 e 2016 e a recuperação desigual, que afetou os mais pobres, fez o Brasil despencar no ranking global de segurança alimentar. Levantamento do economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, com dados do Gallup World Poll de 145 países, revela que o Brasil caiu da 39ª para a 62ª posição entre 2014 e 2019.
Na pesquisa, a população responde se faltou dinheiro para comprar comida. Entre os 20% mais pobres do Brasil, 53% disseram que sim.
— Estamos empatados com a Rússia e pior que o Chile — afirma Neri, acrescentando que a fome anda junto com a extrema pobreza, que teve o nível mais baixo em 2014, mas voltou a subir, registrando o pior ponto em 2019, e deve se agravar com a pandemia.
A diarista Tatiane Gomes, de 31 anos, não vai ter dinheiro para o bolo de aniversário do filho Victor, que completa 6 anos dez dias antes do Natal:
— Ele pediu: “Mãe, vai ter bolo?” Eu tive que responder: “A mamãe não tem dinheiro”. A mais velha (de 15 anos) nem pede, porque já entende, mas o mais novo ainda quer.
Desde o início da pandemia, Tatiane enfrenta dificuldades para comprar comida. Além de ter perdido o trabalho pelo isolamento social, o irmão que mora com ela adoeceu. O auxílio emergencial que recebe vem sendo usado todo para as compras. As cestas básicas dadas por projetos sociais e vizinhos ajudam, mas não são garantidas. Nas refeições, a carne não aparece no prato há meses:
— Quando ganho uma cesta básica, consigo comprar salsicha e uma cartela de ovos. Da última vez, não consegui comprar arroz, porque estava caro, trouxe macarrão. Sinto falta de uma carne — conta Tatiane, que, após o fim do auxílio emergencial, o que deve acontecer em dezembro, voltará a contar só com os R$ 130 do Bolsa Família que recebia antes da pandemia.
Cortes em programas
O IBGE mostrou em setembro que a insegurança alimentar voltou em 2018 a patamares anteriores a 2004 e que estamos na iminência de retornar ao Mapa da Fome, produzido pelo Programa Mundial de Alimentos da ONU, que acabou de ganhar o Nobel da Paz.
Em 2017, Francisco Menezes, pesquisador do Ibase e do ActionAid, já alertava que o Brasil estava em vias de voltar ao mapa da fome, de onde havia saído em 2014. Segundo ele, o empobrecimento da população a partir de 2015, o corte em programas de segurança alimentar e o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), em janeiro de 2019, primeiro mês do governo Jair Bolsonaro, causaram a piora:
— Há um movimento ascendente e acentuado da pobreza. É um dado irrefutável. A falta de condição para adquirir alimentos por uma parte da população vem aumentando.
O programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, lembra o pesquisador, foi quase extinto. Em 2012, o orçamento era de R$ 850 milhões. Este ano, caiu para R$ 120 milhões:
— Foram cortes orçamentários brutais. A sociedade civil, dentro do Consea, fazia pressão por política de segurança alimentar, incomodando. Cortou-se a possibilidade de escuta da sociedade.
Elisabetta Recine, do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade de Brasília (Unb), lembra que o programa de assistência técnica para assentamentos e de apoio para mulheres rurais foram praticamente extintos:
— O fim desses programas desmonta todo o processo produtivo da família, da comunidade. Gera um efeito cascata de empobrecimento.
Em 2018, 85 milhões já viviam em lares sem segurança alimentar. Daniel de Souza, presidente do Conselho da Ação da Cidadania, criado por seu pai, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1993, estima que, com a pandemia, já sejam cem milhões, metade da população, nessa situação.
Depois de dez anos, a Ação da Cidadania voltou a promover a campanha Natal sem Fome em 2017, já identificando a piora da segurança alimentar em decorrência da recessão de 2015 e 2016.
— Estávamos vendo a situação piorar antes de as estatísticas mostrarem. A vivência nos nossos 26 comitês estaduais indicavam que a miséria e o desemprego iriam gerar fome. Avisamos ao governo, mas disseram que só queríamos fazer campanha contra — conta Daniel.
Ação antecipada pela Covid
A ONG antecipou sua ação este ano por causa da pandemia e já distribuiu sete mil toneladas de alimentos. A previsão é que sejam doadas mais duas mil toneladas no Natal sem Fome.
Mariele Bernardo, mãe de três filhos, de 14, 10 e 2 anos, é uma das atendidas pela Ação da Cidadania. A vendedora de produtos de beleza em domicílio chegou a temer não ter o que dar para os filhos no começo da quarentena, quando ela e o marido pararam de trabalhar. Inicialmente, a única renda eram os R$ 212 do Bolsa Família:
— Minha mãe me ajudou, e o dinheiro de uma venda antiga foi para comprar carne.
O auxílio emergencial do governo federal, a ajuda da prefeitura de Nova Iguaçu de R$ 110 para os filhos, que estão sem estudar, e uma cesta básica que o mais velho recebe num programa de pequeno agricultor impediram que a situação ficasse crítica. Mas ela está preocupada com os estudos dos filhos. As apostilas vêm por WhatsApp, mas falta dinheiro para as cópias. Não há computador nem internet.
Mesmo sabendo que o auxílio emergencial deve acabar, Mariele tem fé:
— Vamos conseguir voltar a trabalhar.
O Ministério da Cidadania afirmou, por e-mail, que as atribuições do Conselho Nacional de Segurança Alimentar “foram distribuídas entre várias pastas do governo”. E que foram liberados em abril R$ 500 milhões para o programa de aquisição de alimentos da agricultura familiar, “que beneficiarão cerca de 85 mil famílias”.
Ricardo Castro, neto de Josué de Castro — o médico que se tornou expoente mundial no combate à fome, com o clássico livro “Geografia da fome”, de 1947 — analisa o atual momento do Brasil chamando atenção para outro título do avô, a “Geopolítica da fome”, que fala da importância da vontade política:
— Desde Itamar Franco, passando por Fernando Henrique, Lula e Dilma, sempre houve vontade política de resolver a questão. Hoje temos de nadar contra a corrente de um governo que não só não investe como acha que o problema é inexistente.
Em julho de 2019, Bolsonaro dissera que passar fome “no Brasil é uma grande mentira, é um discurso populista”.
Para Fernanda de Assis, mãe de quatro filhos, de 3, 8, 13 e 18 anos, e que cuida de uma irmã doente, a fome assombra. Ela recebe Bolsa Família e ajuda do irmão, mas, sem ter com quem deixar as crianças, não consegue trabalhar:
— Tem dado para comprar alguma comida porque meu irmão me ajuda. Mas tem dia que falta. Aí, as crianças só lancham, não almoçam. Só Deus sabe do futuro. Enquanto a gente está com saúde, está tudo bem.